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2 meses de quarentena – e sem fim à vista. A panela de pressão da vida no Brasil durante a Covid-19

A Covid-19 demorou a chegar ao Brasil, mas agora que está aqui está compensando o atraso na chegada. A quarentena de dois meses no Rio acaba de ser prorrogada por mais um mês, já que o número de infectados e também de mortes continua aumentando continuamente, ultrapassando mais de 7.000 mortes no Brasil esta semana. E as travessuras políticas neste país parecem uma novela melhor com todas as suas intrigas e acontecimentos inesperados! Minha vida pessoal parece ser uma montanha-russa diária de emoções, altos e baixos no mesmo dia! E no meio da morte e do desespero económico causado por esta pandemia, há momentos em que isso é ótimo!
Há momentos em que isso é realmente ótimo. Quando esqueço porque estou em casa, quando estou no momento, em minha casa, aproveitando as generosas ofertas dos meus professores de ioga e capoeira. A quarentena me permitiu ter acesso diário aos seus pensamentos, práticas e palavras de conforto. Em circunstâncias normais, isso seria impossível, uma vez que estão baseados em Los Angeles e nas Caraíbas. Assim como meu mestre de capoeira que normalmente faz treinos matinais, às 8h, do outro lado da cidade. Por mais que eu ame essas aulas, tem sido impossível para mim comparecer devido à logística. Agora, literalmente saio da cama e participo das aulas no chão do meu quarto!
Tudo isso é ótimo! É mais do que ótimo, foi um presente poder pausar as rotinas habituais e ver o que acontece. Meu grupo de capoeira não tem aulas de capoeira no momento (estamos organizando distribuição de alimentos…!), e no lugar de nossas aulas noturnas diárias, eu poderia participar de outras aulas de capoeira online. Eu pudesse.
Mas eu não.
Em vez disso, descubro como gravito para meditar ao pôr do sol, dançar sob as estrelas e praticar ioga ao luar. É curioso que, como eu não paro de me mover, não consigo parar de me mover, mesmo não podendo sair de casa. Aqui, eu me movo de maneiras diferentes. Mais dança, mais meditação, parada de mãos no terraço e fluxo orgânico no meu quarto, e estou muito feliz por ter voltado à minha prática de ioga, que de alguma forma ficou um pouco, se não perdida, tão esporádica nos últimos meses de mudança de casa, estresse de visto e práticas de capoeira.
Embora a vida esteja bastante estranha agora. Minhas mudanças de humor são enormes e acho que não são estranhas, considerando tudo o que está acontecendo no mundo e no Brasil, quantas pessoas estão sofrendo em geral e na cidade onde moro em particular. E minhas coisas favoritas para fazer e melhorar o humor, como capoeira, ver os amigos, correr no mar e dançar com meu grupo de maracatu foram eliminadas da minha vida. Hoje em dia, em qualquer dia, tenho tendência a sentir tudo! Vou da felicidade do yoga, da gratidão por aqui e agora, ao sentimento de tristeza pelo sofrimento ao meu redor, à preocupação com esta cidade e país, ao sentimento de gratidão por toda a ajuda que recebemos em nossa campanha de alimentos! Para cima e para baixo, hiper e exausto, chorando e rindo alto, pareço vivenciar tudo em um dia!
Além do que está acontecendo no meu mundinho, morar no Brasil agora é como estar em uma panela de pressão, considerando o que está acontecendo na minha comunidade, nesta cidade e neste país. Controlável desde que a tampa esteja colocada, embora você sinta a força aumentando por dentro e, se não for tratada corretamente, ela pode explodir inesperadamente e causar muitos danos. O que farão as pessoas quando ficarem desesperadamente famintas e o governo não fornecer apoio? O que acontecerá ao sistema de saúde à medida que mais e mais pessoas forem infectadas? Aqui no Rio, onde o estado do Rio declarou falência já há alguns anos atrás..!? O que é necessário numa crise como esta é uma liderança forte e políticos que deixem a sua agenda pessoal de lado em prol do panorama mais amplo, trabalhem no bem comum e numa resolução o mais rápida possível. O oposto disso é verdade agora no Brasil, e acho que essa é uma linha tênue para equilibrar – manter-se informado o suficiente para saber o que está acontecendo, através da mídia, mídias sociais e podcasts, sem ficar impressionado com o quadro sombrio que está sendo retrato. Eu me vi, em mais de uma ocasião, querendo acompanhar as notícias e, ao fazê-lo, sentindo toda a minha inspiração, energia e esperança sendo sugadas de mim… deixando apenas uma poça de desesperança e coração pesado.
Para ser sincero, a situação política no Brasil é uma bagunça, onde o presidente está minando o trabalho feito pelos governadores, enquanto tenta proteger a si mesmo, sua família e aliados. O presidente continua indo contra todas as recomendações de saúde e ignorando a quarentena (apesar de um de seus colegas ter sido confirmado com Covid-19), ele continua a atender o público, apertando as mãos e questionando abertamente o trabalho realizado pelos governadores, incluindo o fechamento da escola e empresariais, além de fazer recomendações sobre o uso de medicamentos contra o vírus Corona que ainda não foram testados. A tal ponto que o Twitter teve que bloquear dois vídeos que o presidente havia postado, quando se reuniu e conversou com o público há algumas semanas, já que o que ele disse sobre a recomendação de medicamentos não testados estava de acordo com as regras e regulamentos do Twitter, uma ameaça contra a saúde do público em geral.
A atual situação política no Brasil me assusta. Acho que devo dizer que me preocupa, embora, na verdade, me assuste quando o presidente deste país se comporta como faz e diz o que diz, uma vez que está a permitir uma onda de ódio, ignorância e estupidez por parte dos seus apoiantes, que em “apoio” ao presidente realizaram mais uma manifestação no domingo. Apesar da quarentena e da forte recomendação de isolamento em casa, apoiadores se reúnem em Brasília para realizar manifestação em apoio ao presidente e CONTRA o STF e CONTRA o Congresso. Eu sei, contradição em termos…! Como você pôde apoiar o presidente, mas querendo fechar as instituições políticas que ele representa!? E o presidente saiu ao encontro da multidão. Ele não disse a eles para irem para casa. Pelo contrário, tal como a liderança no famoso 1984 de George Orwell, este presidente está a usar o mesmo tipo de “nova linguagem”, onde as suas palavras significam o oposto do que costumavam significar. Ele disse no domingo que já está farto de negociações e que é hora do povo do Brasil estar no comando! Bem, como democracia, o povo está tecnicamente no comando, uma vez que o país é, até agora, liderado pelo presidente democraticamente eleito e pelos membros eleitos do congresso. O presidente está a iniciar abertamente um potencial golpe militar para colocar “o povo no comando”. Desde quando um regime militar, como aquele sob o qual o Brasil foi governado durante os anos de ditadura, significa que o povo “está no comando”!? Isso não acontece. Nunca teve e nunca terá. Mas, de acordo com o vocabulário da nova língua do presidente, o regime militar significa que as pessoas estão no comando, 100.000 casos de Covid-19 confirmados no Brasil significam que tudo está bem e funcionando conforme o planejado, e Covid-19 significa um vírus que é na verdade, não é nada perigoso”, não é pior do que uma gripe ou um “pequeno resfriado””, como ele disse em um discurso à nação há algumas semanas.
Nas últimas semanas, vimos enfermeiros e médicos protestando em Brasília contra as péssimas condições de trabalho. E agora, apoiadores do presidente começaram a protestar contra as enfermeiras e os médicos, agredindo-os até fisicamente! Parece uma piada, mas temo que não seja.
E é isso que me assusta, que sua ignorância e estupidez dêem permissão a outras pessoas para agirem da mesma forma. E como isso vai acabar eu não sei..! Há uma série de políticos que pedem a abertura de um processo de impeachment contra o presidente. Pessoalmente, estou surpreso que isso ainda não tenha sido feito, considerando que ele participou de sua terceira manifestação contra o Congresso e a Suprema Corte esta semana. Poderíamos pensar que isso deveria ser suficiente para ele não ser um líder adequado para um país democrático. Ou o facto de a sua resposta, quando lhe pediram para comentar sobre o número de mortos no Brasil ter acabado de subir mais de 5.000 mortes, ultrapassando a China (isso foi há 10 dias, agora o número oficial é superior a 7.000), foi;
“E? Desculpe. O que você quer que eu faça? Eu sou o Messias, mas não faço milagres.” Seguido de “Sinto muito pelas famílias que perderam um parente. Mas a maioria das pessoas era velha. Faz parte da vida.” Compaixão sincera do presidente.
(https://oglobo.globo.com/brasil/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-que-reage-bolsonaro-apos-numero-recorde-de-mortes-por-coronavirus-24399480)
A situação política é, no mínimo, sombria, com o popular ministro da Saúde demitido, por não concordar com o presidente sobre a prioridade de salvar vidas em detrimento das empresas. Além disso, o popular ministro da Justiça pediu demissão após acusar o presidente de tentar intervir nas investigações da Polícia Federal contra ele e outros amigos seus. O presidente negou veementemente essas acusações! Apenas para, poucos dias depois, nomear um grande amigo desta família para ser o novo líder da Polícia Federal. Um movimento tão obstrutivamente tendencioso que a Suprema Corte bloqueou a nomeação. O presidente obedeceu à decisão, apenas para no dia seguinte nomear um auxiliar do referido para ser o novo chefe da Polícia Federal. O líder recém-nomeado iniciou seu trabalho sugerindo uma mudança de liderança na Polícia Federal do Rio de Janeiro onde estão sendo feitas essas investigações… enquanto isso o agora ex-ministro da Justiça passou 8 horas prestando depoimento no caso contra o Presidente… e a novela A ópera do que outrora foi a liderança deste país continua, ao mesmo tempo que o número de casos de Covid-19 duplicou em cerca de uma semana, de 50.000 para agora mais de 120.000 casos confirmados.
Além disso, a vida aqui perto, aqui na favela do Vidigal, onde moro, parece bastante sombria. Por mais que eu consiga aproveitar ao máximo trabalhar em casa, estudar em casa, treinar em casa, assim que saio de casa me lembro do motivo pelo qual estou me isolando lá. E a realidade do lado de fora da minha porta também é assustadora.
Ontem saí de casa para ir buscar verduras a um vendedor na praça do Vidigal, logo na entrada da comunidade, no sopé do longo morro onde moramos. A máscara obrigatória no rosto e a bolsa nas costas e lá fui eu. Descendo a colina vi muita gente. A maioria das pessoas usando máscaras abre lojas, talvez vistas como essenciais, desde uma horta, até materiais de construção e ferramentas para sua casa, e até salões de beleza e uma floricultura.
Quanto mais descia a colina, mais difícil ficava respirar. Às vezes posso ser como uma esponja, absorvendo a energia ao meu redor, e o peso do ar parecia uma camada de argila sobre meu peito. Adoro a favela onde moro por causa de seus negócios e agitação e sempre senti que o Vidigal tem uma energia muito leve e brilhante. Não ontem. Não estamos numa boa situação em que muitos perderam os seus empregos devido à quarentena, e nas favelas muitas pessoas vivem de salário em salário, pelo que a perda de emprego pode ter consequências imediatas e duras para a capacidade de pagar renda e comprar comida. Para aqueles que ainda trabalham, a situação também pode ser sombria, uma vez que poucos podem trabalhar a partir de casa, necessitando antes de utilizar transportes públicos e trabalhar com o público. Qual é a melhor opção? Não está trabalhando ou tem maior risco de exposição ao vírus?
Na Praça do Vidigal é onde você pode pegar carona em um dos mototáxis subindo o morro. Não sei quantas vezes fiquei ali, esperando, para conseguir uma moto grátis para subir o morro. Ontem, uma fila de 20 motoboys estava ali, ombro a ombro, gritando desesperadamente para qualquer um que descesse do transporte público oferecendo carona. Foi triste ver. É obviamente difícil para eles ganharem a vida neste momento. Peso e seriedade no ar. Aqui no Vidigal onde as pessoas costumam se cumprimentar, fazer contato visual com as pessoas na rua e contato físico com amigos e familiares, há uma seriedade estranha por aqui hoje em dia. O ar está pensando. Silêncio no supermercado. Ninguém conversa um com o outro, respeitando o espaço pessoal um do outro. Embora eu tenha desistido de correr e só ande até a praça uma vez por semana, mal podia esperar para voltar para casa. Não aguentava a tristeza que pairava no ar, parecia que a tristeza de todos estava me sufocando, então optei por apoiar um dos motoboys e contribuir com pelo menos alguns reais para a renda dele. Entrei no chuveiro assim que cheguei em casa. A fim de enxaguar qualquer resíduo do vírus e tentar livrar-me da sensação terrível.
De alguma forma, estou convencido de que o resultado disto a longo prazo terá um efeito positivo sobre nós, humanos, e sobre esta Terra. De alguma forma. Embora seja muito evidente que os impactos de curto prazo são severos. E aqui vai piorar antes de melhorar. Apraz-me saber que, tal como na China, as coisas começam a parecer um pouco mais pequenas, mas mais positivas em alguns locais da Europa. Há uma luz no fim do túnel. Porém, aqui no Brasil, embora as coisas estejam terríveis, acredito que ainda não vimos o pior. Os hospitais, tanto públicos quanto privados, estão sem equipamentos, e ouvi dizer que há uma fila de 1000 esperando por um leito vago. Mesmo assim, muita gente não respeita a quarentena, e ouço relatos de pessoas saindo em bares do Rio, e pessoas se misturando e saindo como se o vírus não existisse. Os casos dobraram de 50.000 para 100.000 em pouco mais de uma semana na semana passada. 130.000 casos até hoje e mais de 7.000 mortes. E talvez ainda não tenhamos visto o pior.
O que já dá um nó no meu coração é que o Rio, minha cidade amada, a cidade do carnaval e das praias pode não ser mais a mesma, por muito, muito tempo. Ou, nunca. Talvez surja um novo tipo de Rio quando tudo isso chegar ao fim. Sei que a Suécia aplicou uma abordagem muito diferente a tudo isto. E mesmo assim, quando penso nisso, não consigo imaginar como Estocolmo será tão diferente com ou sem quarentena, onde o principal lugar para ver os amigos é em casa. Mas aqui..!? Sim, isso inegavelmente me entristece e assusta bastante, que o Rio que amo e conheço possa ser apenas uma lembrança.
No entanto, estou muito certo de que tudo isso levará a mudanças positivas, de alguma forma, no final. Essa é a minha convicção e talvez cabe a cada um de nós implementar mudanças em nós e nas nossas comunidades para tornar isso realidade!?
Obrigado por ouvir e eu realmente desejo, do fundo do meu coração, que você e seus entes queridos fiquem bem, permaneçam sãos e lavem as mãos!
E sim, ainda estou arrecadando dinheiro para cestas básicas na Rocinha e em outras favelas e cada contribuição é mais que bem-vinda!! No momento desta publicação, estamos nos preparando para 50 pacotes para a Rocinha, na próxima semana.
Com os melhores cumprimentos
x Fia x
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